Há um passo no paradigma da jornada do herói que se chama recusa do chamado. Trata-se basicamente do momento do filme em que o herói se nega a aceitar a aventura que lhe foi proposta ou imposta. Tal momento pode ser explorado das mais diversas formas, porém, ele normalmente termina com o herói aceitando o chamado para a aventura.
Aprofundar quais são as maiores fraquezas e o que um personagem precisa transformar em sua vida para alcançar seu objetivo é talvez a forma mais comum de utilizar esse momento, mas há uma infinidade de formas com as quais esse passo da jornada do herói pode ser utilizado.
Porém, como eu sempre defendo, os paradigmas são excelentes ferramentas quando as utilizamos como são: ferramentas. Ou seja, não são regras que temos que seguir obrigatoriamente para chegar em um único resultado. Se assim fosse, escrever roteiros seria uma tarefa muito mais fácil. E você sabe que não é.
O Filho da Noiva, um clássico contemporâneo do cinema argentino dirigido pelo excelente Juan Jose Campanella e roteirizado por ele em parceria com Fernando Castets, traz um dos usos mais criativos desse momento de relutância do herói que eu já vi.
O chamado para a aventura acontece depois de o filme já ter estabelecido seu tom, a forma como aquele universo funciona e os principais conflitos de cada personagem. É nesse momento que Nino, o pai do protagonista Rafael Belvedere, diz que quer realizar um sonho de sua mãe, que vive em um lar de idosos em uma fase avançada do Mal de Alzheimer: ele quer se casar com ela na igreja e precisa da ajuda do filho para que isso aconteça.
A relutância de Rafael é compreensível em um primeiro momento, afinal, como isso iria funcionar? Como a igreja aceitaria realizar tal cerimônia? Será que sua mãe sequer teria noção do que aconteceria? Bom, a partir desses questionamentos o filme poderia trazer um momento de reflexão sobre como Rafael ama sua mãe e o filme poderia seguir logo para uma trama onde Rafael precisa enfrentar os desafios de arranjar um casamento para dois velhinhos, o que renderia uma boa história, com toques de drama e humor na medida certa.
Porém, ao contrário das expectativas do público, o que o filme nos apresenta é uma relutância tão grande a ponto desse assunto ser deixado de lado por Rafael por conta das outras questões de sua vida. E enquanto o roteiro se aprofunda em cada um dos problemas que o protagonista precisa enfrentar, nós percebemos que ele nos conduz sutilmente para a aceitação desse chamado. Ela acontece na metade do segundo ato, no chamado midpoint, quando muitas outras questões já estão sendo trabalhadas com mais profundidade.
Mas por que isso acontece só nesse momento?
Primeiramente, o filme não é sobre Rafael conseguir ou não ajudar no casamento dos pais. É sobre ele finalmente encontrar um rumo para sua vida. Para isso, é importante saber lidar com questões do passado, sobretudo aquelas que envolvem sua mãe. Portanto, no momento em que Rafael decide ajudar no casamento, ele dá um passo importante para essa transformação.
Como Christopher Vogler descreve em sua obra A Jornada do Escritor, a jornada do herói deve ser usada como um mapa que consultamos nos momentos em que estamos perdidos, mas nunca que nos faça esquecer da rota que estamos traçando.
E quando você aprende a desfrutar da rota, o mapa, a ferramenta e o paradigma, acabam se tornando seus melhores amigos.
Adorei Tom, tanto a análise da recusa quanto da análise do filme. Fiquei com vontade de assistir.